📗 O Cortiço
Aluísio Azevedo
Nasceu em São Luís (MA), filho de portugueses. O pai e a mãe eram cultos.
Desde adolescente já buscava mostrar as mazelas do Brasil da época.
No Rio de Janeiro, entra em contato com os livros do Naturalismo francês [Zola — O Germinal] — ele lia em francês, pois aprendeu com a mãe. Na época ele escrevia para jornais.
Naturalismo: procura mostrara a natureza do homem, como ele reage de acordo com sua natureza. Voltado para as questões fisiológicas, orgânicas. Importa mais o que os personagens vivem socialmente (O cortiço) do que o que eles vivem individualmente.
Aloísio tinha um projeto chamado “Brasileiros antigos e modernos”. O Cortiço seria o primeiro de 5 livros que fariam este percurso, mas os outros 4 livros nunca foram escritos.
Ele lutava pela abolição da escravatura, desde quando morava no Maranhão.
Literatura - O Cortiço - Aluísio de Azevedo - Laura Camilo dos Santos Cruz
Trechos da Obra
Texto I
O trecho de O Cortiço a seguir é do Capítulo III.
III
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
[…] das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
Texto II
O trecho de O cortiço que você vai ler a seguir narra um episódio da vida de Jerônimo no cortiço de João Romão, lugar em que o cavouqueiro conhece Rita Baiana, uma mulata sedutora.
Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora, todas as manhãs, uma xícara de café bem grosso, à moda da Ritinha e tragava dois dedos de parati1 “pra cortar a friagem”.
1 parati: cachaça.
2 alar: criar asas.
3 crisálida: fase de desenvolvimento de certos insetos na qual a larva fica fechada em um casulo.
4 patentear: liberar, abrir.
5 imprevidente: imprudente, descuidado.
6 resignar-se: acatar, conformar-se.
Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe2 os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisálida3. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe4 agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente5 e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso resignando-se6, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros.
E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso, e aos domingos reunia- se gente para o jantar. A revolução afinal foi completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de mandioca sucedeu à broa7; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas e cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a açorda8 e o caldo de unto9 foram repelidos pelos ruivos e gostosos quitutes baianos, pela muqueca, pelo vatapá e pelo caruru […] e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jerônimo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar também com os amigos.
7 broa: pão redondo feito com farinha de milho.
8 açorda: sopa feita com pedaços de pão e temperada com alho, coentro, azeite, etc.
9 unto: gordura de porco, banha.
E o curioso é que, quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças físicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a esperança de tornar à terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de céu e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do Brasil […]
Ao passo que com a mulher, a S’ora Piedade de Jesus, o caso mudava muito de figura. Essa, feita de um só bloco, compacta, inteiriça e tapada, recebia a influência do meio só por fora, na maneira de viver, conservando-se inalterável quanto ao moral10, sem conseguir, à semelhança do esposo, afinar a sua alma pela alma da nova pátria que adota- ram. Cedia passivamente nos hábitos de existência, mas no íntimo continuava a ser a mesma colona saudosa e desconsolada, tão fiel às suas tradições como a seu marido. Agora estava até mais triste; triste porque Jerônimo fazia-se outro; triste porque não se passava um dia que lhe não notasse uma nova transformação; triste, porque chegava a estranhá-lo, a desconhecê-lo, afigurando-se-lhe até que cometia um adultério, quando à noite acordava assustada ao lado daquele homem que não parecia o dela, aquele homem que se lavava todos os dias, aquele homem que aos domingos punha perfumes na barba e nos cabelos e tinha a boca cheirando a fumo. Que pesado desgosto não lhe apertou o coração a primeira vez em que o cavouqueiro, repelindo o caldo que ela lhe apresentava ao jantar, disse-lhe:
10 moral: estado de ânimo ou de espírito.
11 pitéu: petisco.
— Ó filha! por que não experimentas tu fazer uns pitéus11 à moda de cá?
— Mas é que não sei… balbuciou a pobre mulher.
— Pede então à Rita que to ensine… Aquilo não terá muito que aprender! Vê se me fazes por arranjar uns camarões, como ela preparou aqueles doutro dia. Souberam-me tão bem!
Este resvalamento do Jerônimo para as coisas do Brasil penalizava profundamente a infeliz criatura. Era ainda o instinto feminil que lhe fazia prever que o marido, quando estivesse de todo brasileiro, não a queria para mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa.
Jerônimo, com efeito, pertencia-lhe muito menos agora do que dantes. Mal se chegava para ela; os seus carinhos eram frios e distraídos, dados como por condescendência; já lhe não afagava os rins, quando os dois ficavam a sós, malucando na sua vida comum; agora nunca era ele que a procurava para o matrimônio, nunca; se ela sentia necessidade do marido, tinha de provocá-lo. E, uma noite, Piedade ficou com o coração ainda mais apertado, porque ele, a pretexto de que no quarto fazia muito calor, abandonou a cama e foi deitar-se no sofá da salinha. Desde esse dia não dormiram mais ao lado um do outro. O cavouqueiro arranjou uma rede e armou-a defronte da porta de entrada, tal qual como havia em casa da Rita.
Uma outra noite a coisa ainda foi pior. Piedade, certa de que o marido não se che- gava, foi ter com ele; Jerônimo fingiu-se indisposto, negou-se, e terminou por dizer-lhe, repelindo-a brandamente:
— Não te queria falar, mas… sabes? deves tomar banho todos os dias e… mudar de roupa… Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso trazer o corpo sempre lavado, que, se não, cheira-se mal!… Tem paciência!
Ela desatou a soluçar. Foi uma explosão de ressentimentos e desgostos que se tinham acumulado no seu coração. Todas as suas mágoas rebentaram naquele momento.
[…]
Esta rezinga12 chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiudando13. Ah! já não havia dúvida que mestre Jerônimo andava meio caído para o lado da Rita Baiana […]. O fato de haver a mulata lhe oferecido o remédio, quando ele esteve incomodado, foi pretexto para lhe fazer presentes amáveis; pôr os seus préstimos à disposição dela e obsequiá-la14 em extremo todas as vezes que a visitava. […]
12 rezinga: discussão acalorada.
13 amiudar: repetir.
14 obsequiar: fazer mimos ou prestar favores a alguém.
[…]
(São Paulo: Paulus, 2002. p. 87-90.)
Atividades
“Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisálida”. A frase refere-se à transformação que o português Jerônimo, após passar a viver no cortiço. Explique esta transformação.
Que costumes brasileiros Jerônimo foi adotando após (de acordo com o texto) abrasileirar-se?
Além de adotar hábitos brasileiros, Jerônimo também passa por outras mudanças. Cite as principais mudanças de comportamento e de valores pelas quais ele passou.
O que teria provocado as mudanças no comportamento e nos valores de Jerônimo? Qual teoria científico-filosófica divulgada na época da publicação do livro justifica estas ideias?
A mudança ocorrida em Piedade, esposa de Jerônimo, é semelhante à do marido? Explique.
A descrição da personagem Piedade lembra a descrição subjetiva feita durante o Romantismo ou é uma descrição objetiva? Justifique.
É possível dizer que neste texto os seres humanos são movidos mais pelo instinto que pela razão ou pela afetividade, tais quais os animais? Justifique com elementos do texto.
Cite exemplos de comparação direta entre os seres humanos e animais.
Retire do texto expressões que são típicas da variedade falada do português de Portugal.
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O CORTIÇO, DE ALUÍSIO AZEVEDO (#20)
Uma análise sobre o clássico brasileiro do naturalismo - O Cortiço de Aluísio Azevedo
Literatura - O Cortiço - Aluísio de Azevedo - Laura Camilo dos Santos Cruz